1 de junho de 2014

Por que o leite Derrama ?

     Uma das dificuldades da ciência é a justa apreciação das situações: até que ponto se pode simplificar um sistema sem perder a essência do fenômeno que se quer compreender? Para saber como a sopa esfria, nós a assimilamos à água, porque as trocas de calor na superfície, únicas responsáveis pelo esfriamento, são idênticas para a sopa ou para a água. Se estivéssemos interessados nas propriedades de escoamento. só uma sopa muito fluida poderia ter sido assimilada à água. Tal como o poeta, o físico e o químico têm de controlar as metáforas.
     Para compreender por que o leite derrama, podemos considerá-lo semelhante à água? É claro que não, pois a água que ferve não derrama. Manifestamente, o leite é um líquido mais complexo que a água. Uma pitada de observação nos revela sua natureza oculta: deixemos o leite repousar; sua superfície transforma-se em nata, isto é, numa matéria gordurosa (já que a nata batida da a manteiga). Sob que forma a nata se encontra no leite? Uma observação do leite no microscópio teria nos revelado inúmeros pequenos glóbulos, dispersos na solução. O leite é uma emulsão, e os glóbulos de matéria gordurosa dispersos na água, desviam a luz em todas as direções, são responsáveis pela cor branca do líquido.
     Naturalmente, o leite não tem apenas água e gordura, pois os dois corpos não se misturam: manteiga derretida e água ficam separadas ( na ciência, diz-se que formam duas fases ); e com manteiga não derretida, o divórcio é ainda pior. De fato, o leite contém igualmente proteínas e diversas outras moléculas, "tensioativas", isto é, que têm uma parte solúvel na água e outra parte solúvel na matéria gordurosa.. Ao colocar em contato com a água sua parte solúvel em água e em contato com a gordura sua parte solúvel em gordura, estas moléculas tensioativas formam um revestimento que delimita os glóbulos de matéria gordurosa, estabiliza-os e garante sua dispersão na água. Esta estabilização é fortalecida pelas moléculas de caseína que, na superfície dos glóbulos, garantem uma repulsão mútua destes porque elas são carregadas negativamente.
    Todavia, as repulsões devidas à caseína, sobretudo, não bastam para evitar a coalescência ocasional dos glóbulos, isto é, sua fusão: num líquido, os glóbulos estão em movimento incessantes, em ritmos variáveis; os mais rápidos conseguem encontrar-se fundir-se em glóbulos maiores. Ora, quanto maiores os glóbulos, mais forças de repulsão tornam-se fracas em relação ao empuxo de Arquimedes.
   Progressivamente, os glóbulos crescem e sobem: a nata se estabelece na superfície da emulsão.
   Quando se esquenta o leite, o efeito é ainda mais rápido, pois os glóbulos ficam mais rápidos; seus choques provocam mais vezes sua fusão e, à temperatura superior a 80 ºC, a caseína coagula. Esta coagulação tem dois efeitos: a caseína que coagulou não protege mais os glóbulos, e ela forma uma camada contínua na superfície do leite, a pele. O vapor de água que se forma no fundo da panela, progressivamente retido sob a pele, levanta esta última ... e se derrama sobre o fogão com um abominável cheiro de ovo podre.
                                             
                                                     Mas, por que este cheiro ? 

    Porque as proteínas do soro do leite são cadeias em que alguns elos carregam átomos de enxofre. À temperatura superior a 74 ºC, essas cadeias ficam desestabilizadas e seus átomos de enxofre reagem com os íons hidrogênios da solução formando sulfeto de hidrogênio. É este corpo que possui esse ... cheiro de leite cozido, eufemisticamente falando.



Silas Jorge de Faria



Referências:

Hervé This. Um cientista na cozinha.Tradução de Marcos Bagno.
São Paulo: Ática, 1996. Pág 36.


     

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Este blog não se responsabiliza pelos comentários de terceiros.